terça-feira, 17 de março de 2009

O Homem Açoriano e a Açorianidade

ANTONIO MACHADO PIRES

A história do homem açoriano começa nos meados do século XV. A das ilhas que habita perde-se num passado de dúvidas e lendas, que interessa à cartografia, à pré-história das navegações atlanticas ou mesmo a um mítico continente perdido, de improváveis fundamentos. Não são nem os mistérios insolúveis da lenda platónica da Atlantida, nem as complexas teorias geomorfológicas da crista médio-atlantica que nos preocupam agora. O homem acoriano sem antepassados só existe no mito nemesiano de M. Queimado, quando, numa conferência em Nice em 1940, Vitorino Nemésio brincou com a figura de Mateus Queimado, seu alter ego e estabeleceu uma mitogenia que desse consistência à identidade açoriana que, essa sim, o preocupava.

Mas o homem histórico dos Açores de raiz quatrocentista, é pela sua provável diversidade de origens e pouca informação sobre ele, quase um desconhecido
O homem e a mulher açorianos são, basicamente, o homem e a mulher da mundividência de princípios do século XV, i. é, influenciados pela atmosfera do Outono da Idade Média e pelos alvores do Renascimento-uma época de tristezas e incertezas de que fala Huizinga e de que dá testemunho o nosso Rei D. Duarte no Leal Conselheiro (1437-8), ao falar do "humor merencório" dele e da tristeza de tantos outros do seu tempo. Estava-se em plena história das navegações atlanticas e os mistérios do Bojador haviam sido desvendados (1434). As crises cerealíferas e a peste, este horrível espectro de mortes quase colectivas e súbitas, haviam ajudado a empurrar os portugueses para o Atlantico, primeiro a caminho de Ceuta em 1415, depois para a costa de África e para o meio do mar-encontrando (pelo menos oficialmente) a Madeira em 1419-21 e os Açores em 1427.

Pouco interessam agora os pormenores dos achamentos e a sua vasta problemática, das razões político-económicas às "razões de estado" e aos segredos diplomáticos. O homem continental é prudente para com ilhas Fez-se às ilhas não sem as ensaiar primeiro com coelhos no Porto Santo (descoberto em 1419) e com gado nas sete ilhas dos Açores, nas quais, ou em parte das quais, por carta Regia (1439) se afirma que o Infante D. Henrique lá mandara lançar ovelhas e as poderia mandar povoar. Foi o que se veio a fazer.

Os Açores constituem um arquipélago cuja extensão geográfica é igual em comprimento praticamente à do continente português, posto transversalmente, nos cerca de seiscentos quilómetros que separam o Minho do Algarve e Santa Maria do Corvo ... Um Portugal histórico começado em quatrocentos e mais de meio milénio adaptado a nuvens baixas, ventos húmidos e salinos, provações do mar e do vulcanismo imprevisível e aterrador, humidades relativas do ar de 70 a 100%, atmosfera pesada, a que visitantes ingleses mal humorados chamaram azorean torpor ... Mas não faltam a amenidade do clima, a vegetação luxuriante, a paisagem azulada e verde, onde o próprio verde, no dizer de Pedro da Silveira, é feito de vários verdes, e o mar enquadra o perfil de vulcões adormecidos, que não são só ameaças mas ricas encostas cheias de gado e de tranquilidade.

Numa paisagem vulcano-oceanica, preferentemente nublada mas amena e de férteis pastagens e densas matas, se estabeleceram populações um pouco por toda a parte, preferindo para "capitais" de ilha os litorais das costas Sul mais soalheiras e dividindo a sua actividade entre a terra e o mar, certamente mais àquela que a este, cujos rigores são frequentes.

Uma população dispersa por nove ilhas e por pontos muito diversos dessas ilhas (ainda que com um clima e uma orografia semelhantes), tem de ser ela própria também diversa. O isolamento fixa hábitos e cria "fidelidades" afectivas ao local da família e dos antepassados. Nem sempre é fácil comunicar entre ilhas nem mesmo na mesma ilha. De origens diversas, as populações dos Açores ainda se dispersaram e fixaram por muitos pontos. Esta já é uma condicionante idiossincrática importante.

Não sabemos muito sobre donde vêm e quem foram os povoadores do Arquipélago.
Fica-nos em mente uma relativa certeza que os povoadores vieram um pouco de todas as partes de Portugal, a princípio e principalmente para Santa Maria e S. Miguel mais do Sul do País, depois um pouco de todo o País e um contingente importante de flamengos. Carreiro da Costa, no Esboço Histórico dos Açores, diz que "Santa Maria, como primeira terra açoriana a ser povoada, teve gente do Algarve e do Alentejo. S. Miguel, a seguir, beneficiou de famldias norte-alentejanas, estremenhas e já madeirenses" (p.250). Razões de natureza gregária terão levado a que pessoas da mesma origem, por grupos, se fixariam predominantemente neste ou naquele lugar ou parte da ilha. Também parece lógico que os homens da confiança do Infante viessem chefiar a colonização. À resistência física ligaremos outros factores, como o amor ao risco e à aventura compensadora, outros na esperança de tranquilidade maior, outros afastados discretamente.

Sabe-se também que para a ilha de S. Jorge foi um contingente de degredados. Gaspar Frutuoso refere a importancia de mouros no povoamento de S. Miguel, perfeitamente separados dos cristãos. A par dos mouros, os negros, os escravos. Pela importancia do trabalho a realizar, os criados de lavoura devem ter abundado. Fugidos às perseguições religiosas, os judeus encontraram nas ilhas tranquilidade social.

Está assim esboçado um pré-açoriano, que "entronca em nobre e em plebeu" e esse pré-açoriano "foi o português dos Descobrimentos" - como explica Vitorino Nemésio em "O Açoriano e os Açores" (1932), texto a aue teremos de voltar.1
Cedo houve também emigração da Madeira para os Açores, nestes da Terceira para o Pico e para as Flores, terras onde, por pequenez territorial, se começou a casar entre parentes próximos nas classes mais pobres e por conservação de riqueza e preconceito entre as classes nobres e possidentes. Esta endogamia agravou problemas, nomeadamente genéticos, a cuja categoria deve pertencer, lato sensu, a "doença dos Machados", hoje a ser investigada.

A importancia dos Flamengos, sobretudo no Pico e Faial (também um pouco na Terceira e S. Jorge) e dos espanhois exclusivamente na Terceira deve ser posta em destaque. Na toponímia a cultura flamenga deixou nomes significativos (Ribeira dos Flamengos, Espalamaca), na Antroponímia (Terra, Goulart, Silveira, Brum); Jos Van Huertere deu Horta; na tipologia, homens e mulheres com uma estatura, uma cor de olhos e pele e um somatismo característicos. Dos espanhois é clara a origem da palatalização do 1 na Terceira: família (1 junto de i semi-vogal), i. é, ouvindo-se familhia.

As teses linguísticas sobre os falares dos Açores poderão ser uma importante contra prova acerca do povoamento.

De uma forma geral, os falares dos Açores e Madeira devem ser agrupados como falares do Português Meridional. Não se verificam nos Açores (nem na Madeira) dois traços fundamentais caracterizadores do Português Setentrional:

troca do v pelo b v=b binho (vinho)
s apical s saber (saber)

Também nos Açores (e Madeira) não se encontram vestígios de africada
tsorar (chorar < pl - ...) (Plorare)
tsamar (chamar < cl - ...) (clamare)
tsave (chave < cl - ...) (clave-)

Pelo contrário, no caso do falar de S. Miguel (Açores), muito característico, verificam-se traços importantes do Português Meridional:

monotongação ei > e Leite > lete (Alentejo)
a > o casa > cosa (Alentejo)
u > ü tudo > tüdo (Algarve)
ou > o pouco > pok ( Algarve e Alto Alentejo, Castelo Branco)

No falar da Terceira, a vizinhança das palatais contamina "para a frente" (assimilação progressiva)

i > consoante + i + vogal
u > consoante + u + vogal

Estas vogais "extremas" (i e u) como que "infectam" a sílaba seguinte, introduzindo-lhe uma semi-vogal (correspondente: i > i u > u):
Assim:

Campo Casa Kampo Kaza
i>i uem Campo > ei Kiampo no Campo > nu Kuampo
em Casa > ei Kiaza por casa > por Kuaza
escola >s >i = Skiola (caso de uma forte palatalização)

Também se nota na Terceira, especialmente, um 1 fortemente palatizado: família > Familia, o que deriva muito provavelmente da influência espanhola naquela ilha, onde Castela dominou (lembre-se o Castelo de S. João Baptista, antigo Castelo filipino). De resto, a influência espanhola deve ter-se feito sentir sobre o carácter do povo, dado às touradas (de praça e à corda) e muito festeiro.
Os falares das ilhas centrais têm semelhanças e alguns particularismos (de entoação, por exemplo). Quando, em Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio põe a falar o trancador de baleias picoense, o Ti Amaro de Mirateca, temos largamente a impressão de ouvir um rural terceirense de há cinquenta ou sessenta anos atrás. O que se passa com o Matesinho de S. Mateus do conto "Quatro Prisões debaixo de Armas", do mesmo autor, é já nitidamente um caso humano muito peculiar,incarnando linguisticamente, com profusão e pitoresco, o falar da Terceira. São páginas "exemplares" do falar terceirense na obra de Nemésio, constituindo quase um exagero de escrita "fonética" com grafia vulgar.

Além das variantes fonéticas, há algumas variantes lexicais, não muito abundantes (uma burra de milho na Terceira chama-se em S. Miguel uma cafua; uma clarabóia na Terceira chama-se em S. Miguel um alboio, termo de provável origem árabe.

Sobre a influência francesa em S. Miguel, convirá lembrar que não será muito crível que ela se tenha exercido directamente, em termos de ter abarcado toda a ilha. Os topónimos Bretanha e João Bom (Jambon) não explicariam, como indícios, um fenómeno tão marcado como todo o quadro do vocalismo dialectal micaelense, quanto a nós. A influência mais provável é a indirecta, por via de povoadores do Centro-Sul do Continente, onde a influência francesa já se fizera sentir e está atestada (lembrem-se os topónimos Vila Velha de Rodão, Proença, Nisa, Tolosa e a zona de influência dos Templários).

Em estudo recente sobre o falar da Bretanha, Maria Clara Rolão Bernardo, docente da Universidade dos Açores, em tese de Mestrado (Provas A.P.C.C. correspondentes ao Mestrado), orientada pelo falecido e eminente Professor e linguísta, Luis Filipe Lindley Cintra, reafirma esta convicção. Lacerda Machado confirma que o fundo étnico da população micaelense é originário do território meridional, com predomínio do Alto-Alentejo. Fundamenta-se em elementos linguísticos e antropológicos (nomeadamente cefalométricos).

Leite de Vasconcelos encontrara, na ilha do Corvo, na sua visita em 1924, um ü (u francês) semelhante ao de S. Miguel. João Saramago, em tese de doutoramento sobre Le Parler de l’Ile de Corvo"2, confirma este ü, embora não apresente uma posição tão avançada como o de S. Miguel.

Nemésio (citado artigo sobre "O Açoriano e os Açores") pensa mesmo haver uma correlação entre as modalidades dos falares e as origens e o carácter das populações dispersas pelo Arquipélago-o que, sendo um juizo de alguma subjectividade, não deixa de corresponder ao puzzle da própria diversidade humana e social das Ilhas. "As modalidades de índole, costumes, maneiras, acompanham esses matizes com uma precisão magnífica ..."3. Pelo menos nada de mais diferenciado, ao ouvido de um visitante, que os falares de S. Miguel e da Terceira, que correspondem a populações com comportamentos muito diferentes no modo de ser predominante, na religiosidade (mais festeira na Terceira), nos divertimentos (touradas, arraiais muito frequentes).

E justamente essa diversidade que levara Nemésio, bastante jovem (cerca de 27 anos) a fazer uma conferência em Coimbra sobre "O Açoriano e os Açores", que depois publica em Sob os Signos de Agora (Coimbra, 1932) e que, no seu generalismo e "impressionismo" revela dados intuitivos e notas históricas muito significativas. Nemésio quer dar apaixonadamente a conhecer as suas ilhas, porque delas distanciado, "desterrado"-sentimento dele e de todos aqueles ilheus que a vida obriga a viver longe do Arquipélago. Só isso justifica que o jovem de 27 anos escreva, ao lado dessas notas e aproximações do rigor caracterológico colectivo possivel, uma verificação carregada de sentimento e lirismo; fala da aproximação quase iniciática do "começar terra à vista" e exclama: "São os Açores. E, para o comum dos Continentais, a trapalhada geográfica que o nome a Ilha abrevia. Para os açorianos desterrados é o berço, o amor, são as reminiscências, a família (...)."4

É nesta conferência, transformada depois em artigo, que Nemésio faz uma tipologia do ser-se açoriano que, "impressionista" e sem pretensões científicas, continua válida pelas intuições do grande escritor, que conhecia bem as suas ilhas e as queria dar a conhecer.
Assim, considera o micaelense (o mais trabalhador, o mais introvertido e talvez mais rude nos tipos rurais), o terceirense (bem menos trabalhador, mais festeiro e convivente, com traços de certa manha rural), que agrupa com um tipo mals genérico de o açoriano das "ilhas de baixo", e o picaroto, que é uma subdiv1são do grupo anterior, mas que lhe oferece traços muito distintivos, a ponto de o considerar a "nata do insulano" (homens do mar, homens de palavra, dando conta da vida com frontalidade e brio) Em Mau Tempo no Canal há de novo a insinuação da excelência dos homens do Pico, prontos para o báculo ou para o leme de uma canoa da baleia. O Pico forneceu às altas hierarquias da Igreja vários nomes e celebrizou-se também pela pesca da baleia, com a sua gesta e até a sua literatura própria (caso das narrativas do escritor picoense Dias de Melo). "Em verdade, continua Nemésio sobre o homem do Pico - "nenhum açoriano se lhe avantaja na concepção séria da vida, temperada embora por uma ingenuidade que é o segredo do seu triunfo nas lides a que se entrega. (...) O picoense ou picaroto (esta designação é muito mais expressiva) trabalha na vinha e na horta, poda o pomar, vai à moenda com o seu taleigo de novidade, mas está sempre pronto para saltar à canoa à saga da baleia". A imagem que Nemésio guarda do picaroto é sobretudo essa postura heróica e simples dada pelo pescador de baleias que arrisca a vida e do risco faz o seu timbre de carácter. "E vê-lo então nessa vida admirável das campanhas (...), sóbrias como a campanha do pescador da Galileia, tiram ao mar o óleo do cachalote ou o ambar rarissimo da baleia." 5Alheio-ele e o pescador-às preocupações com o ambiente e às cruzadas do Green Peace...

Da alma rural à citadina não fica porém por caracterizar a psique do açoriano, cidadão do mundo como o próprio Nemésio e hospitaleiro por índole e por tradição. Prontos também para a emigração, por disponibilidade, por necessidade, por amor ao risco, pelo apelo de um parente. Comvém lembrar que devemos considerar três tipos de emigração nos Açores: uma emigração histórica (a para o Brasil, mormente as regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em meados do século XVIII), uma emigração norte-americana e canadense (sobretudo a partir do final do século XIX e muito numerosa, a tal ponto que há mais açorianos e seus descendentes nos E.U.A. que nos Açores) e uma "emigração" Continental, i. é, uns milhares de açorianos e seus descendentes que, sobretudo por razões de carreira e estudos superiores, se fixaram no continente português. Este fenómeno último só foi contrariado relativamente após o surgimento da Universidade dos Açores e do Governo Regional, que criaram postos de trabalho mais qualificados, atraindo ou fixando quadros superiores.

Estas verificações genéricas dão aos Açores dos últimos decénios uma configuração social e cultural diferente, à qual não é alheia a presença da RTP-Açores, com produção própria e, mais recentemente, o consumo de antenas parabólicas e do Cabo TV.

Não podemos hoje falar do Açoriano e dos Açores sem ter em conta estas realidades e o seu enquadramento numa época finissecular onde a informação se generaliza e o modelo de homem é o que temos chamado de tele-homem isto é, o da civilização da informação constante e simultanea e do comando à distancia. Tudo se comanda à distancia: o míssil, a sonda médica, a trajectória de um satélite ou de uma nave. E que mais haverá?

Não obstante, as ténues fronteiras entre o mundo urbano e o mundo rural , a fraca den si dade de popul ação , a importancia do s transportes e as suas dificuldades, o isolamento de algumas populações, a mentalidade tendencialmente bairrista e às vezes quase proselítica, algum cultivado distanciamento entre classes sociais em algumas ilhas, as estruturais incapacidades de desenvolver a economia e as fontes de riqueza própria, continuam a caracterizar o viver dos açorianos, apesar de virtualmente unidos no projecto autonómico, político e institucional, como resposta a um sentimento de incompreensão histórica que para alguns assume proporções de abandono. O Açoriano do limiar do século XXI não escapa à evolução rápida das sociedades, nomeadamente as rurais. Felizmente nestas aumenta uma consciência de preservação das tradições e do folclore-mantendo-se grupos folclóricos, grupos de teatro, festividades que persistem e são hoje conserváveis pelas facilidades da tecnologia. Continuamos porém a aguardar uma sistemática e especializada análise dos falares açorianos, gravados há poucos anos pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, com apoio já da Universidade dos Açores. Essa análise contribuirá para construír mais uma contraprova das hipoteses da origem do povoamento dos Açores, região certamente conservadora, como o são todas as regiões periféricas ou de colonização. Os trabalhos de recolha de tradição oral de Viegas Guerreiro, os estudos de João David Pinto Correia (ainda há pouco uma Conferência sobre os romances populares feita na Universidade dos Açores) provam a riqueza do património cultural do Arquipélago e o seu carácter conservador.

O "viveiro de Lusitanidade quatrocentista" de que falou Nemésio foi com os séculos sendo moldado pelas circunstancias do meio, sedimentando uma sociedade peculiar, diversa e una. À sua carga histórica experiencial colectiva assumida individualmente se chamou então um dia Açorianidade, conceito e termo que Vitorino Nemésio criou em 1932 em palavras lapidares:

(...) "Meio milénio de existência sobre tufos vulcanicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de Tempo-e o tempo é espírito em fieri (...)".

"Como homens estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substancia que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história (...)".

"Um dia. se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba."6

Com estas palavras sem qualquer intenção reivindicativa ou política, apenas ditadas pelo tal sentimento de desterro, criava Nemésio, possivelmente influenciado pela hispanidad de Unamuno, a açorianidade, alma do ser-se açoriano, que emerge em quase toda a sua obra de poeta e de romancista e contista.

Alargado o conceito, ele não só exprime a qualidade e a alma do ser-se açoriano, dentro ou fora (principalmente fora?) dos Açores, mas o conjunto de condicionantes do viver arquipelágico: a sua geografia (que "vale tanto como a história"), o seu vulcanismo, as suas limitações económicas, mas também a sua própria capacidade de uma "economia" tradicional de subsistência, as suas manifestações da cultura e da religiosidade popular, a sua idiossincrasia, os seus falares, tudo o que contribui para conferir identidade.

Esta ideia e este termo nemesiano feliz (não existe "madeiridade", embora possa e deva existir atlanticidade, conceito mais abrangente) prestam-se a utilizações que ultrapassam a sua principal semantica ontologico-cultural e podem entrar no domínio da utilização político-ideológica, por vezes até a exageros identitários quase diríamos "fundamentalistas".

No entanto, tem de dizer-se que a açorianidade é de facto o suporte ontológico-cultural da autonomia, expressão emergente, ao nível da fenomenologia política e da reivindicação histórica anti-centralista, daquele outro espírito já velho de mais de quinhentos anos do homem insular incompreendido.

Assim, na atlanticidade, denominador comum das margens do Atlantico e dos povos que planeadamente entre elas circularam, inscreve-se a açorianidade, condição peculiar do ser.- se e do viver nos Açores .
A Açorianidade exprime mais que a simples caracterização tipológica do homem açoriano. Ela implica que se cria um elo com a terra, uma obrigação interior ditada por uma essência histórica assumida individualmente, uma "dívida" para com a terra que nos viu nascer. Aquando do Congresso do Centenário da Autonomia dos Açores (1895 - 1995), Universidade dos Açores, 20-23 Fevereiro de 1995, dissemos, nas palavras de abertura, e retomamos, por não conseguir exprimi-lo melhor: "A Açorianidade é a alma que se transporta quando se emigra, como também aquilo que de cada um de nós se espera quando nós vivemos fora. A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos, uma pequena pátria, um mundo de referencias matriciais. A ilha que somos obrigados a abandonar é um ponto de referência, um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia". E acrescentámos: "Este arreigamento, quando exacerbado, pode gerar sublimações como desesperos, amores ou ódios, "o apego ferrenho às ilhas, a doença do açoriano", que Teófilo Braga, citando-a, disse não a ter tido".

Os açorianos criaram, pelo isolamento e pelas dificuldades e incompreensões de um poder distante, uma espécie de lenda negra de abandono e incompreensão, uma consciência traumática que pode levar àquilo a que chamaremos açorianidade traumática. Tal atitude não se verifica só entre (principalmente) certas ilhas (como S. Miguel) e o Continente, mas entre ilhas. O complexo traumático de centralismo em relação ao Terreiro do Paço repete-se entre as ilhas do Oeste (principalmente na Terceira) e a Praça Gonçalo Velho, "Terreiro do Paço" da ilha maior e Boceta de Pandora de males de um centralismo de capitalidade insular. Sendo S. Miguel e Terceira as duas ilhas de maior peso económico e com tradições históricas específicas (uma de carácter mais autonómico, outra de carácter mais nacionalista patriótico, anti-castilhano e pró-liberal), é explicável que polarizem a maior tensão de bairrismos, que também existem entre outras ilhas e dentro da mesma ilha. Estes deuses e demónios da dispersão e diversidade açoriana não evitam porém a coesão em horas de perigo comum, não devendo ser nem subestimados nem dramatizados. Os Açores nasceram sob o signo de dispersão e da diversidade humana e social, sob a égide e a fatalidade de uma geografia comum e condicionante. Não adianta ignorá-la, nem a ela nem aos homens que nela vivem.

Daí que haverá certas tensões entre ilhas, como entre estas e o Continente. Na dialética do homem de ilhas versus o homem de continentes existe um factor de mistério e incompreensão tradicional e estrutural que convém desdramatizar. Viver em ilhas tem o seu preço: preço no sentido real, concreto, e preço no sentido moral.

Apreciar a condição de viver em ilhas-o seu clima, a sua paisagem, as vantagens do seu grau de isolamento, a criatividade já impossível nas grandes cidades, a sua dimensão mais humanizada-implica também renunciar aos mitos das grandes urbes e o seu consumismo, a sua intensidade de vida, o seu prestígio para certas carreiras.

O açoriano-"... um português da segunda metade de Quatrocentos, introduzidos nele os coeficientes de correcção que o viveiro insular elaborou" -escreveu Nemésio no tão citado artigo "O açoriano e os Açores". Um produto geo-humano disperso por uma pequena sociedade insular, hoje mais aberta ao mundo sem fronteiras. Desconhecida durante muito tempo. Desconhecida porventura hoje.

Visitantes como Leite de Vasconcelos, no Mês de Sonho (1926), Raúl Brandão nas Ilhas Desconhecidas (1926), Hipólito Raposo em Descobrindo Ilhas Descobertas são exemplos de intelectuais portugueses que apreendem a atmosfera física, social e cultural dos Açores. Mas Nemésio é, por ventura, o maior divulgador dos Açores, não só pela informação de qualidade que emerge nos seus escritos, como pela expressão estética, lírica e filosófica, da singularidade do viver ilhéu, alçada a valor universal. O seu exemplo projecta-se nos numerosos escritores que, dentro ou fora dos Açores, tomam estas ilhas como referência íntima e motivo da sua escrita.

Falando de si quando fala dos outros, permitindo ver a sua conterraneidade quando só quer falar de si mesmo, Nemésio exprimiu lapidarmente o mistério do de safio de viver em ilhas e o enc anto de as lembrar, pois
"A Esfinge do mar é a ilha, levanta-se no deserto de águas como a pétrea cabeça que afrontava Édipo na estrada de Tebas (...)". 7

Os açorianos e aqueles que estudam o arquipélago enfrentam há mais de cinco séculos o olhar esfingico das suas nove ilhas, com os mistérios do seu passado quatrocentista e agora já às portas do século XXI.
Referências
1 . In Sob os Signos de Agora, Coimbra, 1932, apud Maria Margarida Maia Gouveia, Vitorino Nemésio - Estudo e Antologia, col. Identidade, Lisboa, ICALP, 1986. pp. 317-329
2 . Université de Stendhal-Grenoble/JNIC, Centro de Dialectalogia, 1992.
3 . Id. p. 325
4 . Id.
5 Id., p. 325
6 Revista Insula, n° 8, Ponta Delgada, 1932. Artigo datado de Coimbra, de 19 de Julho desse ano. É evidente o tom de saudade pelo afastamento da sua ilha, tem Nemésio 30 anos
7 "Da Universal Inquietude’, in Sob os signos dos Agora, Coimbra, 1932.

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